Mercados e feiras “livres” sempre fizeram parte da paisagem humana, desde a antiguidade: são “pontos de encontro” entre produtor e consumidor, para troca e comercialização de toda espécie de mercadoria, principalmente de alimento. O aumento da população e sua concentra- ção em grandes centros urbanos fizeram crescer a importância desses espaços, na mesma medida em que se tornou necessário produzir cada vez mais alimento, armazená-lo e transportá-lo até os centros consumidores, fazendo nascer a noção de “abastecimento”, no qual um novo ator adquiriu importância: o comerciante, grande ou pequeno, que faz a intermediação entre quem produz e quem consome. Os governos, pouco a pouco, tomaram algumas iniciativas no setor. Nas cidades, criaram espaços chamados “mercados”. O armazenamento de grãos deixou de ser uma atividade do produtor: tornou-se necessário armazenar em condições adequadas e na quantidade certa, para assegurar o abastecimento pelo maior tempo possível. A explosão demográfica, seguida do êxodo para as cidades, exigiu a melhoria de produtividade no campo, a pesquisa e o emprego de fertilizantes e equipamentos. Surgiram as primeiras políticas públicas para o setor, com a oferta de financiamento e seguro, garantia de preços mínimos, etc. E, mais do que nunca, fez-se necessário oferecer espaços maiores e adequados para a comercialização. No pós-guerra, especialmente na Europa, foram construídos grandes entrepostos de abastecimento. No Brasil, em 1971, o governo federal criou o SINAC – Sistema Nacional de Centrais de Abastecimento, sob a gestão da COBAL (Companhia Brasileira de Abastecimento) em articulação com os estados, visando à implantação, nas principais cidades, de entrepostos aglutinadores de produtos, produtores e comerciantes atacadistas e varejistas. Foram criadas 41 empresas Ceasas, com 72 entrepostos.
Missão
Inspiradas em modelos europeus, as Ceasas tinham a missão de possibilitar o recebimento, em grandes volumes, de alimentos frescos e perecíveis, sua seleção, consolidação, classificação e armazenamento, em locais escolhidos com cuidados logísticos e ambientais, para permitir uma distribuição mais eficiente e ao menor custo possível, num ambiente de livre concorrência e comércio justo – requisitos indispensáveis a uma correta formação de preços. Ao produtor deve-se assegurar a possibilidade de vender pelo melhor preço e a vários potenciais compradores: ele não pode retornar para o campo com seu produto perecível para jogá-lo fora… E o comprador deve poder comprar pelo menor preço. A reunião dos “atores do abastecimento” em grandes espaços bem organizados permite ainda melhorar e baratear o transporte; fiscalizar o cumprimento de normas sanitárias; criar e manter um sistema nacional de informações sobre quem produz, onde produz, o que produz e quanto se produz, etc. Assim, os entrepostos se tornaram indispensáveis, contribuindo ainda para facilitar, nas cidades, a observância de regras de uso e ocupação do espaço urbano, a melhor disciplina na circulação de veículos, especialmente caminhões, mais eficiência na coleta e disposição do lixo orgânico, etc.
Declínio
A criação das Ceasas foi uma iniciativa tão bem sucedida que, repentinamente, o governo federal pensou que podia afastar-se e ceder seu lugar aos governos estaduais e municipais. Nesse momento, as Ceasas entraram em declínio, por variados motivos. Deixou de existir uma política sistêmica para o setor. Os investimentos públicos cessaram. Os entrepostos pararam de crescer e perderam, pouco a pouco, sua finalidade de propiciar espaços para todos os agentes de produção, comercialização e distribuição, ao menor custo possível, comprometendo gravemente a função essencial de assegurar a justa formação de preços. Além de não investir para ampliar os espaços e assegurar a livre concorrência, as instalações construídas há décadas foram se sucateando pelo abandono de sucessivas administrações ineficientes e onerosas, escolhidas no perverso sistema partidário de trocar cargos em comissão nas estatais, em geral bem remunerados, por favores políticos. As tarifas cobradas dos usuários encarecem o custo do alimento básico que todos consomem – pobres ou ricos e, pior, destinamse apenas à manutenção das próprias estatais proprietárias dos entrepostos, com centenas de empregados, mas que não oferecem ao usuário nenhuma contraprestação: até os serviços de limpeza, varrição, coleta de resíduos, vigilância, segurança, iluminação e fornecimento de água e esgotamento sanitário são terceirizados e pagos pelos usuários, mediante a “tarifa de serviço” ou “taxa” de condomínio. Quando se visita um entreposto, a impressão é de caos; não é exagerado dizer que lá é tão difícil entrar quanto sair; e impossível estacionar. A desordem e a falta de espaço são crônicas. E, para agravar a situação, os entrepostos vêm sendo gradualmente invadidos por atividades econômicas que nada têm a ver com o abastecimento alimentar, desenvolvidas por empresas mais lucrativas do que aquelas de quem produz ou comercializa frutas, legumes ou verduras… O motivo desse desvirtuamento é um sistema de licitação que não leva em conta a finalidade do entreposto, mas tão somente o critério do “maior preço”: quem pode pagar mais, porque seu negócio é mais lucrativo, expulsa aquele para quem os entrepostos foram criados…
Gestão
O que ainda pode ser feito? – Muito. Mas não existem soluções milagrosas. O primeiro passo é o governo entender que, se ele não pode investir nos entrepostos, também não deve continuar onerando o setor com administrações deficientes e tarifas desnecessárias. De que adianta fazer a desoneração fiscal sobre o alimento, afastando a incidência de impostos ou reduzindo alíquotas, se, para produzir e fazer chegar o alimento ao consumidor, o próprio governo faz aumentar seu custo? Até mesmo no campo da legislação o governo tem-se omitido: desde a crise de 2005 na CeasaMinas, que pôs em risco a própria sobrevivência do entreposto, quando o Tribunal de Contas da União considerou “inexistentes” contratos que vinham sendo executados e cumpridos há anos, desenvolveu-se enorme esforço para identificar os problemas e elaborar normas para o setor. Um primeiro projeto de lei passou a tramitar na Câmara dos Deputados desde 2010… Cinco anos depois de aprovado na Câmara, ele aguarda a análise pelo Senado, desde outubro/2015… (PLC nº 59/2015, que “Institui o Plano Nacional de Abastecimento de Hortifrutigranjeiros – PLANHORT, fixa normas gerais para os entrepostos públicos de abastecimento alimentar e dá outras providências”). Se nada for feito, as Ceasas deixarão de existir, ou perderão seu papel de ferramenta essencial do abastecimento alimentar, em especial para a formação de preços. Hoje, com a crise nos governos, passou a existir um perigo ainda maior, quando se fala em “privatizar” os entrepostos, mediante sua venda a bancos ou “investidores” gananciosos. No regime atual de privatização, ganha quem pagar mais… Quem pagar mais vai alugar os espaços pelo maior preço possível, que é repassado ao preço do alimento. Mas tudo que não se deve fazer é criar uma intermediação inútil e onerosa entre quem produz e quem consome. Mais do que nunca, é preciso entregar a gestão dos entrepostos públicos aos verdadeiros atores do abastecimento, como já acontece no Recife – para que possam atuar com mais eficiência e ao menor custo possí- vel, submetidos ao controle e à fiscalização governamental e contratualmente comprometidos com a ampliação e renovação dos entrepostos, revertendo, para essa finalidade, as próprias tarifas que pagam. O Brasil precisa tomar consciência do que está ocorrendo nas Ceasas. E cobrar dos governos responsabilidade e honestidade. Chegamos ao limite. Ainda é possível salvar nossos entrepostos públicos de abastecimento, ampliando-os e renovando-os, sem nenhum centavo de dinheiro público. Basta se ter a percepção correta do verdadeiro papel do governo – que deve atuar apenas como incentivador, regulamentador e fiscalizador, deixando de tirar proveito, ele próprio, do caos que sua omissão criou ao longo de décadas.
Vicente de Paula Mendes (OAB/MG 15.116) -O autor é professor aposentado de Direito Administrativo da UFMG (1970 e 2009), ex-Diretor da Faculdade de Direito Milton Campos. Exerceu, por quase 50 anos, a advocacia contenciosa e consultiva a empresas estatais, prefeitos, governadores e ministros de estado. Tem orgulho de dizer que é amigo das Ceasas.